Friday, September 23, 2011

"Melancholia", 2011, Lars Von Trier

(a outra 'Melancholia', de Albrech Dürer)



Todo apocalipse é pessoal.


Parte Um: Justine.

A personagem interpretada por Kirsten Dunst dá nome ao primeiro "capítulo" do filme. No dia de seu casamento, Justine é a pessoa menos interessada e menos dedicada ao evento. Uma recepção com diversas etapas de confraternização revela a profusão de seu desligamento: ela não está lá.

Espera-se para que a noiva dance enquanto ela decide cochilar, espera-se que corte o bolo enquanto decide tomar um banho de banheira. De um lado sempre as expectativas, em sua maior parte criadas pela irmã, Claire, e da noiva apenas retaliações, gestos de distanciamento e dúvida, a construção de uma personagem que já não acredita nas relações que parece ter acreditado antes. Ela está em um turning point de renúncia ao que se espera dela socialmente.

Parte Dois: Claire.

Charlotte Gainsbourg desempenha o papel de uma mulher neurótica. Todas as suas ações apontam para um vínculo excessivo com a execução de tarefas e o ideal de uma vida. É a irmã responsável: tem marido com poder financeiro e um filho de quem se orgulha, e foi a pessoa que planejou (e viu ruir) o casamento de Justine.

Algum tempo depois da fatídica festa, Claire recebe a irmã que está debilitada, ajuda-lhe a tomar banho e comer. Justine está completamente melancólica, incapaz de sentir o gosto de seu prato favorito (tem gosto de cinzas) e de fazer qualquer outra coisa que não deitar.

Entre as duas, um planeta.

Na noite de seu casamento, Justine repara em uma estrela, que o marido de sua irmã define como parte da constelação de Antares. No capítulo "Claire", já se sabe que não se trata de uma estrela, mas de um planeta chamado Melacholia. Um planeta que se desloca em direção à Terra, ameaçando a existência humana.

Esse pequeno detalhe poderia colocar o filme na prateleira dos "filmes-catástrofe", que geralmente enfocam os protagonistas fugindo fisicamente de uma situação catastrófica. Mas aqui, como na vida, o que está em jogo não é a existência de um todo, mas a ideia da morte de cada um dos personagens. O apocalipse não é apenas uma situação bíblica de resistência (ou destruição) humana frente às forças externas, é também uma metáfora para a morte pessoal e intransferível de cada ser humano.


A partir desta questão e diante da impossibilidade da morte conjunta, cada uma das irmãs criadas por Lars Von Trier traça um caminho inversamente proporcional ao outro:

Justine aceita a chegada de Melancholia como a confirmação de sua punição final. Em definição freudiana, a melancolia é "reconhecida a partir das seguintes condições mentais: cessação de interesse no mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de qualquer atividade e diminuição dos sentimentos de auto-estima até o grau de auto-reprovação e auto-injúria, culminando na expectativa delirante de uma punição." É justamente a partir destas características que a personagem de Dunst se desenvolve. Na verdade, é precisamente na realização da expectativa de castigo que Justine se redime. Ela acredita que a vida na Terra é má e será destruída (pelo "bem" do universo ou de um valor que só ela pode mensurar).

Claire renega a impossibilidade da fuga e se confronta com a destruição de todos os ideais construídos pela humanidade - a estabilidade familiar, a perpetuação da vida através de seu filho e, principalmente, as regras e formalidades da convivência social. (Por que não abrir um bom vinho no terraço enquanto se aguarda o fim do mundo? Será que este é o jeito correto de aceitar o fim?) Vemos em Claire a aparente credibilidade social que se corrompe na tentativa de compreensão consciente do desconhecido, do oculto, da morte.

Exceto pelo prólogo, a câmera tem a pegada típica do movimento Dogma 95 e aponta para um realidade crua, porém todo o contexto metafórico (um planeta chamado "melancolia", uma ponte que Justine e Claire não conseguem atravessar, etc.) se assemelha a um conto literário, o que também pode ser dito de Anticristo, mais uma evidência de que se trata de uma série do diretor.

Prólogo

Parece necessário introduzir toda a fábula para abordar o prólogo do filme, que mostra em super-slow-motion algumas das cenas que são vistas em seu final, além de imagens puramente ficcionais (a ficção dentro ficção), como a Ofélia de Millais e a noiva que luta para andar por entre cipós. São cenas que surgem a partir de páginas de livros abertos por Justine após o dia de seu casamento, talvez como símbolos de seu crepúsculo melancólico iminente.

A inserção das cenas finais no prólogo, por sua vez, parece ser a alavanca que leva o espectador à angustiante previsibilidade do fim. E não é assim a angústia de ter consciência da própria morte? Parece que é justamente este jogo que o diretor propõe, elevando a nossa mortalidade singular à proporção de uma catástrofe coletiva.

(para joaquim, com carinho)